*Percebi que o meu texto “Inadequações” não tinha sido publicado nesse blog. Apenas compartilhei com alguns colegas e amigos quando eu fazia parte de um grupo de discussão… Então, como o meu último texto faz referência a esse, resolvi finalmente publicá-lo. Não sei quais foram os motivos na época que me impediram de fazê-lo… mas antes tarde, do que nunca!

Não tenho muitas lembranças da minha infância. Tenho inveja do meu irmão André, do meu marido Geraldo e suas maravilhosas memórias; eles possuem o dom de descrever com riqueza de detalhes – dia, hora, evento – os fatos dos tempos de menino e adolescência. Minha mãe sempre que deseja lembrar-se de um fato logo diz: – Liga pro André que com certeza ele se lembra! Uma das poucas coisas que me recordo e que tem me acompanhado até os dias de hoje são minhas inadequações. Tentarei me explicar.

Lembro-me da menina extremamente tímida e magricela que eu era. Estudei em colégio de freiras, só para meninas… tentei me adequar, ser igual as meninas mais ‘populares’ do colégio. Mas enquanto elas faziam ballet, eu jogava ‘carimba’ e vollei; enquanto elas gostavam de escrever em seus diários, eu passava as tardes no colégio brincando de spiriball, ou ia jogar futebol com meus irmãos e os meninos da rua; elas gostavam de rosa, e eu de amarelo; elas não entendiam de futebol e eu torcia pelo Flamengo. Percebo mas claro do que nunca antes como eu era inadequada.

Na adolescência tenho mais recordações…. estudei no Marista Cearense, um dos melhores períodos da minha vida! Já era mais desinibida, minha classe tinha meninos e eu já não era tão ‘matusquela’. Mas ainda me sentia inadequada. A fase da adolescência é um periodo onde as meninas ficam mais vaidosas… preocupam-se com a estética, em chamar a atenção dos meninos, e fazem seus grupinhos. No meu caso, tinha outros prazeres… gostava de conversar com os meninos, ia para o colégio com a camisa do Flamengo toda vez que o time do coração ganhava, participava do clube de ciências e olimpíadas de matemática. Mas uma vez eu era inadequada.

O período da faculdade é o que tenho mais lembranças. Cursei durante seis anos o curso de arquitetura e urbanismo. Foi lá que fiz belíssimas amizades que perduram até hoje, conheci muitos lugares do Brasil em viajens com a ‘galera’ – Goiás, Belém, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Ouro Preto, Natal etc. – esperimentei tudo que a vida podia me oferecer. Vivi minha juventude como se cada dia fosse o último – acho que por isso sinto tanta falta deste tempo…

Tentei me adequar de várias maneiras; fui católica, depois participei durante anos da igreja messiânica, fui do movimento estudantil, de diretórios acadêmicos, etc. até roqueira eu fui! Minha religião durante muito tempo foram as músicas do Nirvana, Metálica, Offspring, Red Hot Chilli Peppers, Pixes, Radio Head, Led Zeppelin, Pink Floyd, Beatles, etc…. até que entrei para igreja evangélica.

Lá achei verdadeiramente que tinha me encontrado, não precisaria mais me adequar, pois a promessa de que me aceitariam do jeito que eu era resolveria meus problemas. Deixei amigos, as viagens, as músicas, os sonhos. Fiz outras amizades, conheci outros ‘mundos’, outros sons e sonhos. Me apaixonei verdadeiramente pela proposta do Evangelho, mas nunca me conformei com as respostas simplistas dos meus pastores. Eu era um problema nos cultos de doutrinas, nas escolas bíblicas, nas reuniões de liderança e sem perceber, aos poucos fui novamente me inadequando.

Resolvi então fazer seminário. Foram quatro anos maravilhosos! Minha mãe sempre diz que se eu tivesse me dedicado ao curso de arquitetura o tanto que me dediquei no seminário hoje eu seria um Niemeiyer! Durante este período construí com outros colegas um diretório acadêmico – eu, Flávio, Elton, Thiago e Ítalo – montamos uma revista, um espaço onde colocaríamos nossas ideias, que pretensamente achávamos que mudaria o mundo. Sempre fui inconformada. Era o terror dos professores despreparados e amada por aqueles que gostavam de um boa e calorosa discussão.

Olho para minha vida e percebo que nunca me conformei com o que eu era, com o que eu sabia, com o que os outros me diziam e ensinavam. Tinha desejo de sempre me recriar, de ressurgir, repensar, rever… Acho que por isso me vejo hoje tão diferente daquela menina do colegial tímida e de pernas finas. Perco-me e me acho todos os dias e percebo hoje quão maravilhoso isso tem sido para minha vida!

Tenho hoje trinta anos e sou casada! Percebo que as inadequações me acompanham até hoje. Faço parte de um grupo onde as mulheres são uma minoria… e para piorar não me calo! Falo o que penso, o que não penso, falo direto – sem poesia e sem metáforas – o que torna minhas palavras muitas vezes sem a beleza esperada. Inadequada! Em um mundo onde a subjetividade é comum sou na maioria das vezes objetiva demais.

Penso então em desistir! Em ser como a maioria, simplesmente a mulher de algúem, a filha de alguém, ou ainda no futuro, a mãe de alguém. Não consigo… quero ser Cláudia, correndo o risco de muitas vezes não ser compreendida pelas suas inadequações, mas ainda assim, mais corajosa do que nunca, se posicionando, falando, escrevendo o que pensa e acredita. Na maioria das vezes sem poesia e sem metáforas, de modo claro e objetivo; arriscando-se sempre e instigando as pessoas a sua volta a não se conformarem com suas adequações, a sairem da suas “zonas de conforto”.

Não busco credos, nem catecismos, não quero respotas prontas, procuro uma espiritualidade existencialista, que me sirva agora, para esta vida! Minha fé está mais transbordante e apaixonante do que nunca, minha espiritualidade cada vez mais humana… talvez por isso, me sinto mais inadequada do que nunca… contudo ‘prefiro ser esta metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo’!

Cláudia Sales

Por ocasião desse texto, recebi uma das mais lindas demonstrações de carinho que compartilho com vocês!

Ave Cláudia, cheia de graça

Integridade tua, esperança nossa

Bendita sois vós de linhagem escassa

Alegria de quem te conhecer possa

Já sorvi bom bocado desse fel

Inadequada é, de minha pele a cor

No fluir dos dias usei como broquel

Curtir amizade serena com a dor

Intrigante é conhecer-te nas letras

Que te mostram assim tão igual

Nas coisas que fiz, nos risos nas tretas

Folguedos de menino, nada de mal…

Tivesses teu ímpeto contido

Tivesses calado tua ânsia

Não teria eu te conhecido

Não terias tu minha ressonância

Não te cale metamorfose ambulante

Salve! Salve santa inadequação!

Singelo é o som, é doce, abarcante

Da voz que sai de teu coração.

 
19.08.09

Fátima Clara