No ano de 2008 comemoramos 120 da assinatura da Lei Áurea no Brasil, libertando cerca de 700 mil negros que ainda viviam em regime escravista e proibindo de uma vez por todas a escravidão em território nacional. Em todo o Brasil tivemos manifestações para lembrar esta data.
Contudo, sabemos muito bem que esta lei não resolveu o problema da escravidão no Brasil, uma vez que o Estado brasileiro não tomou medidas que favorecessem integração social do negro, deixando-o a margem da sociedade. Ainda podemos observar, 120 anos depois, a distinção que ainda existe entre brancos e negros; os dados mais recentes do IBGE, por exemplo, apontam que 8,3% de brancos com 15 anos de idade ou mais são analfabetos, enquanto que 21% são negros; 22,7% dos brancos com 18 anos ou mais concluíram o ensino médio, somente o fizeram 13% dos negros; entre outros exemplos que poderiamos aqui citar.
Este blog quer então colaborar para a reflexão desta questão ainda não resolvida, ser um trampolim (ou seja, impulsionar) deste e de outros assuntos que acredito ser relevante para a contemporaneidade. Boa leitura!
LAMENTO DE CATIVEIRO E DE LIBERTAÇÃO
Meu irmão branco;
Minha irmã branca;
Meu povo! Que te fiz eu?
E em que te contristei? Responde-me!
Eu te mostrei o que significa ser templo de Deus.
E, por isso, como sentir Deus no corpo
e celebrá-lo no ritmo, na ginga e na dança.
E tu reprimiste minhas religiões afro-brasileiras.
E fizeste da macumba caso de polícia.
Eu te inspirei a música carregada de banzo
e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo,
a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei o samba e o rock.
E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome,
acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste.
Meu irmão branco;
Minha irmã branca;
Meu povo! Que te fiz eu?
E em que te contristei? Responde-me!
Eu desci dos morros, te mostrei um mundo de sonhos,
de uma fraternidade sem barreiras.
Eu criei mil fantasias multicores
e te preparei a maior festa do mundo, dancei o carnaval para ti.
E tu te alegraste e me aplaudiste de pé.
Mas logo, logo, me esqueceste na favela,
na realidade nua e crua da fome, do desemprego e da opressão.
Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz.
Dos restos que recebia fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé,
a cozinha típica do Brasil.
E tu me deixaste passar fome.
E permites que minhas crianças morram antes do tempo
ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados,
imbecilizados para sempre.
Meu irmão branco;
Minha irmã branca;
Meu povo! Que te fiz eu?
E em que te contristei? Responde-me!
Eu fui arrancado violentamente da minha PÁTRIA AFRICANA.
Eu conheci o navio fantasma dos negreiros.
Eu fui muita coisa, peça, escravo. Eu fui a mãe-preta para teus filhos. Eu cultivei os campos, plantei fumo e a cana.
Eu fiz todos os trabalhos.
E tu me chamas de preguiçoso, me prendes por vadiagem.
Por causa da cor da minha pele me discriminas
e me tratas ainda como escravo.
Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos, sociedades fraternas,
sem escravos, de homens e mulheres livres.
Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade
e a doçura à alma brasileira.
E tu me caçaste como bicho, arrasaste meu quilombo
e ainda hoje impedes que a abolição seja para sempre verdadeira.
Meu irmão branco;
Minha irmã branca;
Meu povo! Que te fiz eu?
E em que te contristei? Responde-me!
(BOFF, Leonardo. O caminhar da igreja com os oprimidos. 3ª ed. São Paulo: Vozes, 1988).
fevereiro 25, 2009 at 5:11 pm
Excelente o texto e o lamento acima.
São de pessoas assim conscientes e criativas
que o mundo precisa.