maio 2011


*Esse texto é uma paráfrase do livro A escola que eu sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, do escritor Rubem Alves.

Começo esse texto pegando emprestado o aforismo que Rubem Alves repete sempre: ‘Numa terra de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo.’ O autor do aforismo, o poeta T. S. Eliot, coloca a palavra fugitivo no singular, fazendo menção de que este é um ser solitário. Sentimento esse que não era só do poeta, mas de Rubem Alves e meu também. Na maioria das vezes me sinto assim, andando sozinha na direção contrária. Mas, por intermédio de minhas leituras fui descobrindo outro ‘fugitivo’, esse também foi incompreendido quando certa vez  afirmara que “a religião é o ópio do povo”. No entanto, a sua afirmação me causou curiosidade e certa simpatia. Aproximei-me dele e o reconheci. Seu nome era Karl Marx. E embora eu nunca tenha me aprofundado em  seus escritos, sabia que não estava só. De fato existiam e existem outros fugitivos, no plural!

 Quando se fala em religião é quase imediato associá-la à igreja, pois fomos instruídos que a religião e o sentimento religioso são de sua tutela. Daí vem todo o nosso problema. Isso porque nossas igrejas são organizadas segundo o modelo das linhas de montagem. Igrejas são fábricas organizadas para a produção de unidades bio-religiosas móveis portadoras de dons e conhecimentos especiais. Esses dons e conhecimentos são definidos exteriormente pela lei da oferta e procura, numa lógica de mercado. As unidades bio-religiosas móveis que, ao final do processo, não estejam de acordo com tais modelos de mercado são descartadas. É a sua igualdade e homogeneidade de discurso que atesta a qualidade do processo. Não havendo passado no teste de qualidade-igualdade, elas não recebem os certificados de excelência ISO-12.000. As unidades bio-religiosas móveis são aquilo que vulgarmente recebe o nome de ‘religiosos’. Esses podem ser ainda subdivididos em liderança (pastores, padres, presbíteros, dirigentes) e membresia, ou ainda rebanho.

 As linhas de montagem denominadas igrejas se organizam segundo coordenadas espaciais e temporais. As coordenadas espaciais se denominam ‘templo’. As coordenadas temporais se denominam ‘culto’. Dentro dessas unidades espaço-tempo os líderes religiosos realizam o processo de acrescentar sobre a membresia os dons e saberes necessários para crescerem espiritualmente. Depois de passar por esse processo de acréscimos sucessivos – à semelhança do que acontece com os objetos originais na linha de montagem da fábrica – o indivíduo que entrou na linha de montagem chamada igreja perdeu totalmente a visibilidade e se revela, então, como um simples suporte para os dons e saberes que a ele foram acrescentados durante o processo. O membro está, finalmente, formado, isso é, transformado num produto igual a milhares de outros. ISO-12.000: está formado, isto é, de acordo com a forma. É mercadoria espiritual que pode entrar no mercado da fé.

Foi aí que o meu companheiro de direção contrária me perguntou se não seria possível mudar as coisas. Ao me mostrar que essa lógica leva o indivíduo ao suicídio intelectual e a alienação, numa espécie de droga anestésica ludibriante e  viciante, eu precisava abandonar a linha de montagem de fábrica como modelo para a igreja e, andando mais para trás, tomar o modelo da oficina do artesão como exemplo. “O mestre-artesão não determinava como deveria ser o objeto a ser produzido pelo aprendiz. Os aprendizes, todos juntos, iam fazendo cada um a sua coisa. Eles não tinham de reproduzir um objeto ideal escolhido pelo mestre. O mestre estava a serviço dos aprendizes e não os aprendizes a serviço dos mestres. O mestre ficava andando pela oficina, dando uma sugestão aqui, outra ali, mostrando o que não ficara bem, mostrando o que fazer para ficar melhor”. Claro que um modelo assim é bem mais complicado e árduo. Muita coisa para refazer e reformular. Muita coisa para resignificar.

Utimamente são cada vez mais apelativos os esforços para fazer de nossas linhas de montagem, chamadas igrejas, mais otimizadas, compatíveis com uma lei de mercado que possui como referenciais o consumo, o lucro, o individualismo, o apelo midiático e a dissimulação. Mas o que eu gostaria mesmo é de acabar com elas. Sonho com uma igreja retrógrada, artesanal…

Quando vamos a uma igreja sabemos exatamente o que vamos encontrar: um púlpito, onde o líder maior prega para o rebanho, salas de escola bíblica, em cada sala um professor, todos num esforço sobrenatural de ensinar e explicar os conteúdos sagrados e inquestionáveis de uma ortodoxia caduca, e por fim, a membresia e a esta, compete apenas aprender sem questionar, pois isso pode ser visto como uma crise de fé.

Sonho com uma igreja onde o templo e as salas de catecismos são irrelevantes. Não é necessário dízimos, paredes, nem cultos, também não existe necessidade para hierarquias – não existe a relação líder-membro, ou ainda pastor-rebanho. Não existe cultos de ensinamentos, escolas bíblicas, não existe necessidade de separar os neófitos dos doutores da lei. Penso em um lugar onde podemos crescer na Graça e no conhecimento assim: poderíamos formar pequenos grupos com interesse comum por um assunto, reunimo-nos com alguém que de repente possa ter maior leitura sobre esse assunto, dando-nos orientação sobre o que poderíamos ler para debatermos e juntos construirmos um conhecimento que não foi imposto de cima pra baixo e sim emergido do meio da comunidade. Juntos, estabeleceríamos um programa de trabalho. Nessa proposta, não existe aquele que fala e aquele que ouve. Todos são importantes, falam e escutam num processo dialético que possui como referenciais a ética, a estética, o respeito mútuo e a solidariedade. Ao final do programa estabelecido, nos reuniríamos de novo e avaliaríamos o que aprendemos. Se o que aprendemos foi bom, justo e agradável, aquele grupo se dissolve, forma-se um outro para estudar outro assunto.

Sei que vocês devem estar incrédulos. Como é possível uma igreja assim, sem templo, salas, sem líderes, professores e aulas de catecúmenos, dogmática, doutrina, devocionais, em lugares e horas determinadas, de acordo com um programa, linha de montagem? Será que as pessoas podem crescer espiritualmente desse jeito?

Só sei de uma coisa: somente aquilo que é vital é aprendido. Por que será que, a despeito de toda teologia, de todos os apelos que as igrejas tem feito para tornar o mundo cristão, o mundo não se torna um lugar melhor de se viver, um lugar mais justo e solidário? Por que os membros dessas igrejas têm dificuldade de encarnar os valores do Reino em suas vidas (como se o cristianismo fosse uma religião baseada em conceitos e não em uma vida!)? Simples! Porque nas igrejas o ensinado não vai colado à vida. Isso explica o desinteresse da membresia pelos problemas sociais, pela política (a não ser que eu “ganhe algo”), com os direitos civis, etc. Alguns me contestarão dizendo: ‘Mas a minha igreja faz obra social!’ Pergunto: Ela faz a obra social porque compreende os problemas sociais que enfretamos e ama a justiça, ou faz para ganhar um galardão no céu? Quais são as razões reais?

O conhecimento sobre Deus é uma árvore que cresce da vida. Sei que existem igrejas que têm boas intenções, e que se esforçam para que isso aconteça. Mas as suas boas intenções são abortadas porque são obrigadas a cumprir o rito sagrado, ensinar a doutrina correta. Suas pregações são entidades abstratas, prontas, fixas, com uma ordem certa. Ignoram a experiência que o indivíduo está vivendo. Aí tenta-se, inutilmente, produzir vida a partir dos conceitos. Mas não é possível, a partir da mesa de anatomia, fazer viver o cadáver. O que desejo ver nas igrejas é o conhecimento crescendo a partir das experiências vividas pela sua membresia.

Disse, no início desse texto, que queria uma igreja retrógrada. Retrógrado quer dizer ‘que vai para trás’. Quero uma igreja que vá mais para trás das ‘doutrinas’ e ortodoxias abstratamente elaboradas e impostas. Uma igreja que compreenda como os saberes são gerados e nascem. Uma igreja em que o saber vá nascendo das perguntas que o corpo faz. Uma igreja em que o ponto de referência não seja o a ortodoxia oficial a ser ensinada (inutilmente!), mas o corpo que vive, admira, se encanta, se espanta, pergunta, prova, erra, se machuca, brinca. Uma igreja que seja iluminada pelo brilho dos inícios.

Cláudia Sales

Marcos Monteiro*
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O momento apaixonante merece um texto apaixonado, mas somente os poetas tem a habilidade de sugerir vertigem e volúpia pelo entrelaçar das palavras. Como não sou poeta celebro em texto comum a decisão do Supremo de legalizar o legítimo direito dos homossexuais de constituir amor e família. Desses instantes que fazem jus a festa, dança e feriado nacional. Caíram as cercas da praça, mas o povo desacostumado não consegue invadir o espaço para deitar na grama, girar na roda gigante ou dançar ciranda.
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A unanimidade da decisão nos surpreendeu, embora o nosso tribunal maior apenas reconheça um direito já exercido por mais de dez milhões de brasileiros. Maneiras de reconhecer a humanidade de minorias. Ser humano é ir se estabelecendo na diversidade e na inconclusão. Os diversos modos de se amar, a exuberância de uma sexualidade que se estabelece sem respeito a regras e manuais, são expressões legítimas dessas diferenças que transformam a paisagem humana em poesia e beleza.
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Homossexualidade é palavra que tenta definir o indefinível, pretendendo retirar do ser humano parte de sua humanidade. Faz pouco tempo, comemorava em um restaurante um aniversário, na companhia de amigos e amigas, a maioria rotulada como gays, lésbicas, ou palavras semelhantes. A comida e a bebida eram comuns e a conversa girava sobre história, poesia, literatura, futebol, religião, sexo. Cardápio variado de comida e de conversa, duas coisas do cotidiano de todos os seres humanos.
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Ter direito ao pão de cada dia garante a sobrevivência, o direito ao sexo de todo dia ou de vez em quando transforma a sobrevivência em poema. O sexo é esse momento de ultrapassar limites, em que o corpo se propõe como lugar de mistério e de arrebatamento. Vivido amorosamente acrescenta à volúpia do carinho a profundidade da doação livre e mútua, entre dois seres humanos livres e disponíveis. O direito legítimo à carícia e ao amor é agora legalizado como pertencente a todo ser humano, sem a necessidade de rótulos.
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Sem as cantigas das comemorações, o ruído dos protestos são feitos em nome da família e da religião. Novamente a questão das definições. Se família significa entre outras coisas o espaço para o crescimento mútuo de seres humanos e para o cuidado e educação de crianças, esses espaços são diversos, com diversos atores atuando em diversos papéis. Crianças criadas por pais ou mães do mesmo sexo não se tornaram necessariamente frustradas, drogadas ou marginais, nem mesmo homossexuais, terror de muitos.
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Alguns religiosos se pronunciaram a favor da união estável mas não do casamento, prerrogativa das igrejas. Na sutileza semântica, a complicação lingüística. Carícias e palavras não podem ser patenteadas, a pretensão apenas convida à continuidade da luta. As religiões e as igrejas não são concessionárias das cerimônias nem proprietárias de Deus. O direito de crer (incluindo o direito de não crer) e o direito de amar são prerrogativas tão humanas quanto o direito de comer e de conversar.
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Para os que pertencem ao campo religioso, como pertenço, a decisão do Supremo é oportunidade de aprofundamento, de busca de compreensão e de ressignificação. Livros, artigos, pesquisas, estudos densos sobre a sexualidade humana já são abundantes. Acima disso, o ser humano concreto, pessoas que vivem amor e sexualidade de modos diversos. Muitos que experimentaram sentimentos de alegria e de libertação quando assumiram a sua maneira de amar; muitos que não se sentem abandonados por Deus. Pelo contrário, diante da maldição de todos, somente contam com o sentimento da compreensão Dele, no espaço indevassável de sua interioridade.
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Diante de tudo isso, podemos assumir vociferantes o papel de arautos da culpa, da vergonha e do remorso, ou celebrarmos a boa notícia (evangelho) da libertação e nos juntarmos à alegria de milhões de brasileiros e brasileiras que se sentiram acolhidos e protegidos pela lei, pela primeira vez na história. Por estranha e feliz coincidência este texto está sendo postado em um novo e diferente treze de maio.
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Feira de Santana, 13 de maio de 2011.
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*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também faz parte das diretorias do Centro de Ética Social Martin Luther King Jr. e da Fraternidade Teológica Latino-Americana do Brasil
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.br, site http://www.cepesc.com.
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